Vivendo, apesar da gordofobia
Por Ana Anspach, jornalista
Sim, precisamos falar sobre este assunto. Desde
que tenho consciência, luto contra a obesidade. Na infância, era o que as
pessoas chamavam de “fofinha” - palavra preconceituosa para dizer que “você
está acima do peso”. Há 58 anos não se conhecia a palavra gordofobia - preconceito
que leva à exclusão social e nega acessibilidade às pessoas gordas -, mas hoje,
sei que minha mãe era gordofóbica.
Por volta dos 4 anos, quando comecei a tomar
qualquer líquido, vinha com gosto de adoçante artificial e eu detestava. Minha
mãe me colocou no ballet e na natação, e na escola, tinha que jogar basquete. Tudo
isso eram tentativas para não permitir que eu engordasse. Achar mecanismos para
manter as mulheres sob controle, sob vigilância, é uma realidade que não vem de
hoje.
O plano correu bem até aos 11 anos, quando
meu pai sofreu um grave acidente (mas não morreu) e eu disparei a engordar. Sim.
Porque luto também contra a compulsão alimentar, que é intimamente ligada às
emoções, como meus problemas de ansiedades, tristezas e decepções.
Há anos - já perdi a conta de quantos -
vivencio uma exclusão que vai além de olhares vigilantes e julgadores de
pessoas que, inclusive, convivem comigo. Um olhar que me acusa e me reprova. Olhares
que me dizem: “Vai fazer regime; você é uma aberração, somos bons demais para
conviver com você”. E não apenas olhares. Os mais “sinceros” dizem: “Você tem
um rosto bonito, só precisa emagrecer; Você está engordando de novo, né? Não
tem jeito mesmo”.
Silenciosamente ouvi perguntas do tipo: Como você
conseguiu casar? Como você tem emprego e é competente? Como uma gorda pode estar
feliz? Como essa gorda pode ser poeta? Como é que essa gorda não tem vergonha
se ser artista e aparecer para o público? Como essa gorda pode andar de ônibus se
ela não passa pela catraca? Será que o extensor do cinto de segurança vai caber
em você? Aqui, nesta loja, não tem roupa para o seu tamanho. E assim por
diante.
Cansada desse escrutínio, fiz, em 2021, a
cirurgia bariátrica. A melhor decisão que tomei na minha vida. Mas como não
existe mágica, nem varinha de condão. E não consegui me livrar da compulsão
alimentar. Também não modifiquei totalmente o meu modo de vida. Resultado: após
3 anos estou voltando a engordar. Frustrante.
Durante toda a minha vida sabia que tinha
algo de errado comigo e acreditei que, por ser gorda, não merecia ser amada nem
respeitada. E aceitei que entrassem no meu caminho muitas pessoas ruins,
interesseiras, sarcásticas e maldosas. Em todas essas pessoas eu via o olhar de
reprovação da infância, principalmente quando queria comer coisas que minha mãe
não permitiria. Fui filha única por quase oito anos e meus pais esperavam uma
filha “perfeita”, e claro, a obesidade me fazia ser imperfeita, defeituosa. O
que me dilacerava por dentro.
Essa “inadequação” aos padrões sociais me
persegue de diversas maneiras negativas. Quando um corpo não está dentro desse
padrão, ou seja, corpo magro, tido como belo e saudável, é estigmatizado,
considerado feio, mau, anormal, doente, fraco e triste, e, portanto, excluído
socialmente. Para a grande maioria das pessoas o que me define é o meu corpo
gordo, muito mais do que meus sentimentos, comportamentos, capacidades. Não
sinto nenhuma culpa por ser como sou. Mas, muitas vezes, me sinto inadequada, o
“patinho gordo”.
Ao contar a vocês minha história, proponho uma
reflexão sobre os corpos gordos. E me posiciono como militante da resistência,
um corpo político que quebra padrões e se coloca no mundo para ser respeitada.
Esse é um esforço de aceitação e entendimento do próprio corpo. E é a forma de
dizer ao mundo que as pessoas que me reprovam e não me aceitam é que precisam
de ajuda, pois se incomodam com algo que não diz respeito à vida delas. Ser
gorda foi um dos motivos que me levou à depressão. Mas isso é assunto para outro
texto.
AVANÇOS?
Atualmente, é bem verdade que consigo ver
alguns avanços em certas pessoas, mas o preconceito está longe de acabar. O
repúdio pode ser sentido desde o que se refere as questões sexuais e
reprodutivas, comportamentos, maneiras de vestir e padrões de beleza corporal.
O corpo feminino sempre esteve ligado a
padrões de beleza e julgamentos, que procuram indícios de elegância, saúde,
riqueza, ou, por outro lado, se é desajeitado ou gordo. O corpo é considerado um cartão de visitas. Ele
causará uma boa ou má impressão, mesmo que as aparências possam enganar.
Tudo para quem é gordo é mais difícil: os
assentos dos ônibus, metrôs e aviões, por exemplo, não nos comportam. Você não
precisa nem ser muito grande para saber que o espaço das poltronas - sejam elas
de avião ou ônibus - está longe de ser adequado. Nem as catracas, que ainda são
encontradas em alguns lugares como cinemas e ônibus, por exemplo.
O sensato seria que nós, gordos, cobrássemos
das companhias terrestres ou aéreas condições necessárias para comportar seus
passageiros, ainda que gordos. Mas o que a sociedade faz é justamente culpar e
repreender a pessoa por ser quem é. A pessoa gorda é vista, por muitos, como um
imenso obstáculo atrapalhando a passagem, ocupando espaço e fazendo peso.
É assim que normalizamos o preconceito que,
às vezes, aparece no olhar julgador da pessoa magra ao se sentar ao lado de uma
pessoa gorda numa viagem. Em casos extremos, esses olhares viram até
reclamações. Acesse o site a seguir e tire suas próprias conclusões: https://azmina.com.br/colunas/mulheres-gordas-tambem-viajam/
- Mulheres gordas também viajam – AzMina.
Mas um assunto em especial é bastante
delicado: vestuário. A indústria da moda brasileira está entre as dez maiores na
economia mundial. As peças produzidas em escala industrial são moldadas a
partir de formas padrão e precisam de corpos padronizados para consumi-las. Não
é a moda que se amolda ao corpo, mas, sim, o corpo que deve se amoldar à moda.
Embora o mercado de vestuário “plus size”
brasileiro tenha crescido 75% nos últimos dez anos, segundo a Associação Brasil
Plus Size, quem veste tamanhos maiores ainda tem dificuldade para encontrar
roupas nas lojas.
“Gordofobia na moda é ser impedido do direito
básico de comprar roupas e ocupar espaços”, opina o influenciador digital Caio
Revela, um modelo plus size que compartilha o ativismo
antigordofóbico nas redes sociais.
De acordo com a pesquisa mais recente da
Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica
(Abeso), de julho de 2022, 85,3% das pessoas obesas já sofreram gordofobia no
Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 24% da população brasileira é
obesa, enquanto aproximadamente 61% têm excesso de peso.
Como é possível, diante desse quadro e desses
números, as pessoas gordas ainda terem dificuldade de comprar o que querem
vestir? Normalmente, quando compro roupas não é tanto porque eu tenha gostado
dela, mas pelo simples fato dela caber em mim. A maioria das roupas que estão na
moda ou são tendências, não são para mim. Porque dificilmente têm do meu tamanho
ou “caem bem” no meu corpo.
E, como no Brasil tudo acaba em samba ou
música, deixo aqui dois exemplos de como as pessoas que estão fora do peso são
“cantadas”. Essas duas músicas trazem tanto preconceito e ofensa às pessoas gordas
que o editor preferiu não publicar a íntegra das letras aqui. Parece piada de
mau-gosto, mas é puro desrespeito. Triste mesmo. Acesse os links a seguir e se
indigne com tanto ataque à dignidade alheia.
“A Bailarina (Gorda)”, de Oswaldo Montenegro,
disponível no link: https://www.letras.mus.br/oswaldo-montenegro/47867/
“Rap das Gordas”, de Pretinho Básico, disponível
no link: https://www.letras.mus.br/pretinho-basico/1574730/
Fontes de consultas: “Lute como uma gorda:
gordofobia, resistências e ativismos”, de Maria Luiza Jimenez; “Questão de
gênero: a gordofobia é igual para homens e mulheres”, de Agnes Arruda; “Mesmo
com avanço do mercado plus size, gordofobia na moda ainda é realidade, dizem
ativistas”, de Bruna Sales; “Viajar é legal, mas se você for gorda…”, de Agnes
Arruda. Imagem: Divulgação/Internet.
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